Diariamente, um desafio é lançado: uma palavra, apenas uma, que seja capaz de mexer com a criatividade desses oito escritores. Eles deixam os dedos correr no teclado, livres e descomprometidos. O resultado? Uma poesia, uma crônica, um haikai, um conto... Enfim, o que a inspiração deixar. O blog é isso, um convite à criatividade, provocada todos os dias, no finalzinho do expediente.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... SAXOFONE

Por Gabriela
John Coltrane está mais para histórias de amor do que ACDC.
Mas você me trouxe os dois, assim de surpresa, com a mesma paixão.
Do sofisticado doce saxofone ao intenso duro da guitarra.
Dos dois, aprendo a sacar as sutilezas, a maestria e talento na arte do exímio tocar, a paixão, a virtuose.
Descubro novos sons, outras intensidades, belezas. Vidas repletas, carreiras vitoriosas, selvagens, turbulentas e sensíveis.
E sim, que podem embalar qualquer, a nossa história de amor. Na quietude e na explosão.
John Coltrane e seu saxofone quando a noite pede vinho, um jantarzinho especial e nossos corpos mansos, grudados.
Angus Young e sua guitarra quando a noite pede Famous Grouse, um belisco qualquer e nossos corpos doidos, grudados.
Você me traz tudo.

A PALAVRA DE HOJE É... SAXOFONE

Por Cristina
Ele gostava de dizer que era seu mentor musical. Ela aceitava e sorria um sorriso intimo, desses que a gente sorri para si mesmo e não demonstra pelo lado de fora; desses que a gente disfarça e que fazem um bem enorme porque se espalham pelo corpo fazendo vibrar cada pedacinho de pele, cada órgão, cada tecido interno. Assim ela gostava de sorrir quando ele dizia isso.
Não queria que ele se sentisse muito importante com seu posto de mentor. Gostava que ficasse na duvida se ela concordava ou não e a cada vez que dizia de novo, ela fazia essa cara de quem nada sentia e por dentro vibrava e ficava contente com o fato dele ser a pessoa que mostrava a ela toda as notas, percebia exatamente o que ela gostava, prestava atenção no que ela dizia a respeito de cada frase musical. Ela gostava destas minúcias nele e das minúcias que ele percebia nela e se encantava com as coisas nele que o faziam diferente das outras pessoas do mundo.
Uma pessoa única era ele que, de tão única na imaginação dela, quase se tornava um instrumento. Por vezes podia ser um violino com notas melodiosas e carinhosas, por outras um violão alegre, havia dias em que era um pandeiro agitado e outros em que se tornava uma piano a soar num fim de tarde. Mas os dias que mais a encantavam eram aqueles em que ele se tornava um saxofone e ela o escutava ao longe e cada vez mais perto, a cada passo um acorde mais alto, ele vinha chegando, vinha aos poucos e ela se tomava pelo molejo do som, seu corpo vibrando, seus ouvidos ouvindo apenas a ele e mais nada, seus movimentos seguindo a musica e então ela se abandonava, se rendia, se perdia olhos nos olhos, misturava-se no sopro que soprava o instrumento, imiscuía-se, se entregava e se dava toda, completamente, a ele.
Por Mariângela
Quando o som começou a rolar na vitrola,
ela sentiu-se relaxada e pronta a sentar na poltrona.
Era a deixa para aconchegar-se em seu canto
com todos os direitos que aquele momento lhe reservava.
No único espaço em que ninguém se achegava,
garantido após 15 anos de casamento.
Não sabia se aquele não compartilhar é que dava prazer
ou a simples sensação de pertencer-se por uma ou duas horas.
Mas alguma coisa aconteceu naquela noite,
quando na canção o saxofone entrou de sola,
como o uivo da noite de lua cheia, querendo aventurar-se.
Mesmo instante em que o seu homem, há 15 anos,
passava pela porta, rumo a cozinha, para comer qualquer coisa.
Ela pensou porque não ser devorada ali, por ele, naquele canto particular,
ao som do seu blues predileto, que o sax insistia em evidenciar.
Por que não quebrar as regras e ultrapassar as próprias fronteiras?
Por que não deixar que o gosto doce do vinho fosse compartilhado com outra boca?
Foi quando seu homem voltou da cozinha e surpreendeu-se ao vê-la nua, na poltrona do canto,
sussurrando no mesmo tom do saxofone ao fundo: 'Vem?'

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJÉ É... DAMASCO

Por Sócrates
O imperador amanheceu irritado. No palácio da aclamação - entre cobertas gordurosas e jalecos entupidos de coxas de galinha - o rei convocou as damas da côrte para um recital. Os versos iam e vinham sem qualquer reação de vossa excelência. Até que uma das damas soltou um dos malfadados poemas da Boca do Inferno, Gregório de Matos. Que falta nesta cidade? Verdade. Que mais por sua desonra? Honra. Falta mais que se lhe ponha. Vergonha.Inculcado com os versos argilosos o rei ordenou com uma das mão, vai, vai, continua: O demo a viver se exponha. Por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha. Continua infeliz, começou, agora termine, estou curioso.Quem a pôs neste socrócio? Negócio. Quem causa tal perdição? Ambição. E o maior desta loucura? Usura. Notável desventura de um povo néscio, e sandeu, que não sabe, que o perdeu Negócio, Ambição, Usura.A dama sorriu, mas constrangiu a côrte inteira. Quem pensa que é dama indolente>Não percebe, não vê, não sente. Uma dama, uma fruta, uma poeta, porém, pura. Pois bem. Vou terminar com o improviso, decretou o imperador e soltou:Não é dama, não é fruta. Se Gregório aqui estivesse, lhe chamaria de puta.Como sou rei, carrasco e não perco uma disputa. Decreto sua morte, desta dama proclamada por si mesma uma fruta, lhe chamo de damasco, mistura de dama com carrasco e rasgo seu rabo enfiando um pé na sua bunda.
Por Gabriela
Eu conheci damasco quando me desafiei.
Revirei aparências, escarafunchei conceitos, meti o dedo em texturas desconhecidas.
Conversei com o vizinho que aparentava ser a pessoa mais antipática do mundo.
Comprei uma blusa vermelha pra sair do conhecido preto que dominava meu guarda-roupa.
Cortei o cabelo mais curto.
Disse não pra uma convenção familiar que nunca fez minha cabeça.
Comi um damasco.
Eu já perdi gosto demais por preconceito, rigidez.
Hoje me experimento. E tem sido doce.
Por Mariângela
No stop, aquele jogo que se escreve palavras que começam com uma letra sorteada,
preenchendo os espaços - cor, flor, fruta, nome, animal, País... -
eu sempre emperrava na letra D.
Tudo vinha na cabeça rapidinho: dourado, dália, Décio, dinossauro -
porque no meu stop valiam até os extintos.
Mas, chegava na fruta... era uma coisa!
Até que um dia eu descobri o damasco.
E passou a ser a fruta padrão de minha letra D.
Conheci, mais tarde, ela ao vivo.
Foi quando o tempo das vacas magras deu um tempo,
e meu pai trouxe uma dúzia delas, que devoramos com prazer.
O Natal estava chegando e lembro que, nele, repetimos a dose na ceia.
Passei a associar damasco à letra D do stop e ao Natal.
Mais à frente, já na adolescência, deparei-me com a fruta seca.
E, confesso, me apaixonei pelo sabor e
pelo rapaz que me ofereceu um punhado delas numa festa.
Eu associava damasco à letra D do stop, ao Natal e à paixão.
Pouco mais tarde, casei-me com o rapaz, que sempre me muniu da fruta seca
e de um carinho e um amor tão saborosos que me faziam lamber os beiços.
Resolvemos passar a lua de mel em Damasco, uma cidade linda na europa oriental.
Eu associava damasco à letra D do stop, ao Natal, à paixão e a minha felicidade.
Agora tenho um novo desafio.... no stop, achar nome de flor com z...
mas aí começa outra história...

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É...CONSERTO

Por Mariângela
Hoje eu sei que não devia ter dito,
nem ter feito, pensado ou posado daquele jeito.
Tudo foi um erro: do primeiro beijo em outra boca
às promessas insanas de nunca mais querer-te.
Eu sei, sinto e pressinto, ter sido esse meu maior engano.
Daqueles sem fim, que nada apagam ou escondem no avesso.
Dos que cicatrizam e formam sulcos profundos na pele seca.
Os que não têm jeito ou forma, retorno ou desvio.
Sim, eu sei, não há mais conserto em nós.
Por Gabriela
Eu botei o dedo na ferida, indelicada e inábil.
Nem pensei na dor, nem pensei no teu passado, exposto e duro.
Eu te esqueci aquele que não foi meu, que não conheci.
E você não é só o dia de hoje, aqui, comigo.
Acho que posso ter sido cruel sim, mas não percebi. Não desta vez.
Tem conserto?
A minha palavra ferina, o teu peito machucado?

terça-feira, 7 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... CONSTATAÇÃO

Por Gabriela
Às vezes cai em mim o peso das minhas escolhas. Eu não deveria estar aqui. Ouvindo a voz de um colega de trabalho esquisito que não suporto e me lembra, todos os dias, como o mundo está povoado de gente rasteira e desagradável. Eu deveria estar num país distante, escrevendo um romance, falando outras três línguas. Deveria ter um emprego de alta executiva e ganhar o triplo do que ganho pra poder viajar de férias todos os anos. Ser uma profissional reconhecida na minha área. Ser procurada por outras empresas, ávidas pelo meu passe. Ganhar Leões de Ouro em Cannes. Ter tesão e brilho no olho em cada título que eu criasse, em cada job que me caísse na mão. Não precisar contar o salário pra ver se todas as contas serão devidamente pagas no final do mês. Ter uma tarde de crise existencial tipicamente feminina (de álibi, a TPM) e torrar uma grana em roupas na Zara, na Cori, na Chocolat – sem estourar o limite do cartão e sem o menor arrependimento, ainda que em casa, no meio do closet abarrotado, eu ache que jamais vou ter coragem de usar aquele casaco de couro cor pistache, modernérrimo. Ser ligada nas últimas invenções tecnológicas e mandar emails até debaixo do chuveiro, me conectar com um amigo egocêntrico em viagem espiritual pelo Nepal e saber o que ele está almoçando. E antes de ir para o escritório (horário super flexível de alto escalão), passar pelo salão de beleza mais renomado da cidade pra fazer cabelo, unha, pé, massagem e ouvir fofoquinhas inocentes completamente desconectadas do mundo capitalista corporativo onde transito com a maior naturalidade do mundo! Eu deveria ser aquela pessoa cool que se torna meio referência, sem saber. Uma cabeça! Inteligente, descolada, despreocupada, competente, linda, simples, fashion, antenada, culta, amiga, parceira, independente financeira e emocionalmente, cidadã do mundo – à vontade em Paris, Japão, Boston, São Francisco, Morro de São Paulo, Milão, Rio de Janeiro, São Paulo, Sepang, Penedo, Cambury, Bora Bora enfim milhas e milhas de conforto e adaptação instantânea. Eu deveria não me prender às pequenezas, não me deixar atingir pela imbecilidade e má educação dos milhões de motoristas desta cambada humana que precisa trabalhar do outro lado da cidade feito eu, não ouvir as besteiras e falsidades ao longo das horas que passo trancada no escritório, contando minutos pra poder colocar a cara na rua e respirar um pouco mais fundo e leve. E não, não odeio meu emprego ou a minha vida, ao contrário, me considero uma privilegiada. Mas uma constatação que me veio agora, neste segundo em que escrevo e ouço o colega esquisito que trabalha ao lado: neste segundo, eu não deveria estar aqui. Não, não deveria.
Por Cristina
Estava cansada de constatar, confessou-me baixinho para que ninguém escutasse.
Respostas que sabia há tempo e teimava em constatar novamente. Mania de ir com as coisas tão até o fim, mas tão até o fim que sempre lhe sobrava algum sofrimento no final.
Mania de saber todos os detalhes, dizer todos os porquês, expor o que deveria ficar guardado a sete chaves. Até que a constatação a tomava por inteiro, sempre assim, em um repente quase que esperado, depois de tantos saberes reunidos.
E ali restava com o que já sabia a lhe pesar nos braços.
Disse-me que neste momento conseguia ver a cena em toda a sua dimensão e que só então percebia todas as nuances.
Aconteceu ontem, disse. E com tudo o que já sabia saíra passo a passo, forçando um sorriso nos lábios, como se fosse preciso...
Nunca um acesso de fúria, pois que este mataria a possibilidade da curiosidade a ser satisfeita.
Nunca um afastar decidido pois então como poderia saber?
Sempre aquele cavar das verdades doloridas, que só terminava na constatação final.
Aquela de ontem.
Que a deixara com o que já sabia a lhe pesar nos braços.
Por Mariângela
- Aqui consta que você não ama há muito tempo.
- Tem razão... faz tempo mesmo.
- Então tem de trocar as peças porque enferrujaram. Quando resolver amar, capaz de emperrar.
- Será? E o que mais tem de mudar.
- Parece que a paciência anda meio desregulada.
- É? Pra mais ou pra menos?
- Hum... pra bem menos. Quer que dê uma reforçada?
- É bom, é bom... espero que não doa muito.
- Doer um pouco sempre doi, mas vale a pena.
- Verdade... ano passado reforcei o bom humor e até que está durando.
- Que bom, porque esse é o tipo de coisa que desgasta logo....pelo menos na maioria.
- E você acha que preciso de algo mais?
- Olha, precisar você precisa, mas é melhor não mexer mais, pra não desalinhar.
- Certo. Então fecha a conta. Ano que vem volto e revemos como tudo está.
- Isso. Até lá, então.
- Até.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... VIDRADO

Por Sócrates
- Estou vidrado nesta mina, mano.
- Pô, deixa de cheiro mole mané. Pô, deixa disso, pô.
- Você não viu a mina mano, tá por fora de qual é.
- Deixa disso mano, vidra neste aqui, fuma ai mano.
- Não, tô fora mané, o negócio agora é a mina. A mina não gosta deste cheiro.
- Não gosta do cheiro, qual é.
- É muito melhor o cheiro da mina, tô vidrado.
- Pô, ó o mano pô, qual é a dele, pô.
- Tô vidrado.
Por Mariângela
Era tão fixado naquela idéia
que perdeu toda noção.
Andava despido de bom senso
metia-se em buracos e poços sem fundo,
tudo porque só tinha um foco,
uma faca e um bilhete mal escrito.
Descansou quando matou quem o perseguia.
E ficou deitado, na sarjeta, por horas,
a sangrar a morte.
Por Gabriela
Nasceu ali, entre uma parede escorregadia e outra.
Úmido e à mostra. Nu.
Pra todos os olhos, todas as vergonhas, todos os todos.
Um gelado apertado de gargalo estrangulado.
Coisa estranha, brotar dali. Dum árido vidrado de uma garrafa largada no meio da rua.
Sem pra onde nenhum.
Coisa estranha. Nem era sentimento pra se embrenhar assim, em cantos estéreis.
Nem água pra se meter aonde não se vai.
Era larva, mosquito, febre, dengue, dor.
Uma coisa que nem devia.

sábado, 4 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É UMA FRASE... MAIS, AINDA

Por Mariângela
Beijei muito, mas tão pouco
para a sede de minha boca.
Falei sempre de tudo
mas sinto falta de outros dizeres.
Entreguei-me inteira algumas vezes,
mas sempre devendo um pequeno pedaço.
Amei nada, gostei muito, apaixonei demais,
mas só uma vez deixou marcas que não quero apagar.
Fiz um filho, e nunca soube se poderia ter mais,
e hoje me sinto mãe de um só rebento.
Desejei estar em lugares que nunca estive,
mas é aqui que passarei o resto de meus dias.
Quero mais, ainda, eu sei...
mais por muito menos.
Por Gabriela
Então eu deitei aqui e vi todas as estrelas. Há céus sem elas. Aqui, proliferam.
E minha cabeça encostada na terra me lembrou chãos que pisei sem ter idéia de fazê-lo.
Os pés quando tornam o caminhar automático perdem o traçado, o cheiro, o destino.
O mundo ficou sendo aqui. Este pedaço de terra que recebe meu corpo e me mostra o infinito que nunca será de ninguém.
Eu não ouço nada, nem o silêncio. Não quero nada. Sinto minha imobilidade e cada poro lateja contente.
Nem sei se gostaria de alguém aqui, ao lado. Acho que não.
Mais, ainda – a vida podia ser só isso, nem que por um segundo.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... ERRO

Por Mariângela
Eu me arrependo de tantos erros.
Mas de que me adianta?
Erros não se apagam,
nem têm conserto.
São marcas que ficam
como a pinta esquecida no meio das costas.
Mas está lá, te lembrando no espelho,
do que foi feito e nunca terá jeito.
Sinto muito por alguns erros,
aqueles que invadem outros destinos.
E na minha amarga consciência
tiram meu sono de menino.
Queria errar menos.
Aliás, queria não errar.
Mas erro, logo, existo.
E fico aqui, contando as pintas
que nascem nas minhas costas...


Por Sócrates
A borracha apaga o que deveria ser visto. A verdade é ocultada pela vontade de não errar. A história é uma lembrança necessária e não sente amnésia. A caneta rasura, mas, o corretivo falsifica. A maré esconde as pegadas de um grande amor.
Por Gabriela
Nem quero achá-los.
Que os erros apodreçam e simplesmente se esqueçam que foram cometidos por nós.
Importa o encontro. Este aqui – de nossos olhos se engolirem e saberem.
Somos imaculados, um pro outro. Vamos nos querer assim.
Se tropeçarmos agora, que seja sem os sapatos que já usamos, não na estrada em que morremos.
Que se eles, os erros, vierem desta vez; que nos sejam amorosos e ensinem.
E não matem, não matem nada nesta perfeição de momento que somos nós dois.