Diariamente, um desafio é lançado: uma palavra, apenas uma, que seja capaz de mexer com a criatividade desses oito escritores. Eles deixam os dedos correr no teclado, livres e descomprometidos. O resultado? Uma poesia, uma crônica, um haikai, um conto... Enfim, o que a inspiração deixar. O blog é isso, um convite à criatividade, provocada todos os dias, no finalzinho do expediente.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... MÃO

Por Mariângela
Não existe viagem melhor e mais longa em tão pouco tempo.
Contraditório? Talvez.... mas se durar segundos, sinto-me na eternidade.
Se em minutos for, é como se os séculos passassem lentamente a minha volta.
Gosto mais quando duram horas, não as do relógio sobre o criado-mudo.
Mas as horas que construimos em tão pouco tempo, que não me apressam nem envelhecem o que sinto.
Esse passeio que sua mão faz pelo meu corpo traz à vida o sutil sentimento de pertencer-te.
E querer que, ao percorrer minhas coxas, ela repouse, acalma-se e permaneça.
Depois recomece a aventura ímpar de descobrir-me e pedir, com as pontas do dedos, o meu querer-te.
Por Gabriela
Eu coloquei minha vida na tua mão, ela não suportou.
Mão nenhuma suporta a vida de alguém, muito menos uma que não a sua própria.
Você tinha razão, não era problema seu me segurar, me tomar pra você. Um peso – eu e meu querer salvação.
Tua mão não me suportou. Justo.
Hoje fluo. A vida que não é de mão nenhuma, de coisa alguma, de ninguém. Minha.
Dela eu cuido, dela eu sei. E ninguém mais diz que não.
Te agradeço ter me soltado, me largado pra trás.
Te agradeço me ter me devolvido para meus pés.
Hoje caminho, ninguém me carrega.
Hoje vejo.
Por Cristina
Deixe-me ver sua mão. Que bonita é. Gosto de mãos assim, firmes, como as suas.Como é macia! Dá vontade de acariciar...Deixe-me ver as linhas, sulcadas como são. Vida longa e forte, destino bem traçado, quantas coisas posso imaginar olhando as linhas da sua mão...Deixe-me segurá-las mais um pouco, só isso. Você se incomoda? É que estou sentindo a maciez. Nada digo mas penso no que seria sentir suas mãos roçando meu corpo, cada canto, cada nuance, minhas curvas, minha nuca, suas mãos me segurando forte, exigindo meu corpo colado no seu. O que terão sentido os corpos que sua mão acariciou? Como eram suas mãos, antes de mim?Se você pergunta digo que estou só olhando as linhas e não estou pensando em nada. Mas nem olho para você porque sem duvida meus olhos diriam o que vai dentro de mim. Minha mão está suando melhor você não perceber, na verdade, você nem sabe que nessas horas minha mão sua, meu corpo treme e é quando sei que outra pele combinou com a minha pele. Mas como você me conhece pouco!De qualquer maneira vou acariciar sua mão só com a ponta dos dedos. Na verdade o que eu queria era que você me arrebatasse e com suas mãos me abraçasse forte e me acariciasse o corpo todo, com um abraço todo, com seu corpo todo e fizesse de nós dois um todo, o tempo todo.Mas nada digo. Isso, acaricie a minha cabeça, passe as mãos assim suaves pelo meu cabelo.Fico quieta, não penso no seu arroubo que não vem. Isso, não pare. Aos poucos, adormeço.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... GRAMPO

Por Sócrates
- Vossa excelência.
- Ora, ora.
- Como vai?
- Bem. Muito bem. A que devo tamanha reverência?
- Gostaria de conversar sobre a Operação Corre-Corre Calango.
- O senhor vai realizar alguma operação na fazenda.
- Em todos os calangos da fazenda de vossa excelência..
- Compreendo, compreendo. Mas, como você sabe "as coisas só engordam com o olho do dono".
- Mas, vossa excelência.
- Até mais tarde. Tratamos deste assunto pessoalmente.

Um gesto rápido pois fim ao telefonema. Pegou o celular e telefonou para a Polícia Federal.
- Sei que vocês ouviram a minha conversa, por isso, estou ligando para explicar e denunciar todo o contexto da Operação Corre-Corre Calango.
- Mas, vossa excelência, não podemos revelar o conteúdo da Operação Na Moita.
- Nada disso. Depois a Operação Esconde Esconde estoura e vai sobrar para mim.
- Mas, a Operação Na Moita não tem qualquer relação com a Operação Esconde Esconde.
- É o que você pensa meu rapaz.
- Mas, vossa excelência. Se vossa excelência denunciar a Operação Corre Corre Calango, a Operação Na moita cai por terra.
- Mas, é isso mesmo que eu quero que aconteça.
O senador desligou e na sala ao lado uma equipe técnica da Operação De Baixo do Pano comemora o depoimento do parlamentar.
Por Gabriela
Eu te avisei pra não cortar uma franja tão curta.
Não combina com o formato do teu rosto.
Dá um trabalho danado secar pra ficar assim lisinha e virada pra dentro.
Você vai ter que passar um creme pra pentear pra domá-la toda vez que lavar.
Tem dia que vai acordar toda amassada, sem jeito.
Fora o que demora pra crescer!
Você nunca mais vai conseguir ter cabelos longos de novo!
...
Mas é uma graça este grampo descompromissado que você coloca pra segurar estes fios rebeldes que invejam tuas pestanas e se jogam sobre teus olhos fundos.
Por Cristina
Eu, com os grampos, grampeio o que for grampeável.
Organizo, separo contas com o mesmo nome, agrupo despesas iguais e grampeio
Recorto artigos que quero reler mas, se forem do tamanho de uma folha de jornal,
corto em tamanhos menores e grampeio
Para isto me servem meus grampos.
Soube que há quem use grampos para torturar.
Conheci quem usasse para remendar roupas, muito estranho!
São tantos usos que já soube fazerem dos grampos...
Quanto a ele, não consegui convencê-lo a usá-los do modo que considero correto.
Teima em grampear sentimentos dois a dois, insiste no grampear de lágrimas
e há quem diga que o que quer mesmo (pasmem!), é grampear almas.
Por Cleo
Tateava seu corpo com mãos de cartógrafo.
Poderia desenhá-la à mão livre, se quisesse. Sem compasso, régua ou esquadro. Poderia desenhá-la de olhos fechados, sim, pois sabia de cor cada parte sua, com todos seus defeitos e perfeições.
Nomeava partes do seu corpo como se delas fosse primeiro e único descobridor.
Explorava sua pele como um aluno da Escola de Sagres os mares desconhecidos: ao sabor do vento, mas apressado, curioso e sem saber se haveria viagem de volta, lá para quando e onde a vida era segura e vazia.
Era como se cada dia só tivesse existido para levá-lo até ali. Ela ilha, ele mar. Os braços ao seu redor, sitiando-a e a conservando quente e úmida quando anoitecia.
Ele se apaixonava por ela um pouco mais toda vez que sentia seu cheiro.
E se surpreendia. Quando achava conhecer a distância exata entre as sardas que decoravam seu colo, era como se um vento soprasse e um novo desenho fosse gravado em sua memória. O bom é que era mais uma parte dela que ele poderia começar a adorar. Como aquela mecha de cabelo mais claro que se soltava do grampo que ela usava para lavar o rosto de manhã; como aquela falha na sobrancelha, que de tão perfeita, parecia feita de propósito.
Amava suas axilas, seus tornozelos, a parte de trás dos seus joelhos, mas tinha loucura especial pelo formato de suas falanges: delicadas, longas e coroadas por unhas de leito fundo.
Passeava em seu corpo e contornava com a ponta dos dedos a pequena depressão que se formava do encontro de suas clavículas.
Decorou o sentido do nascimento de cada um dos pelos loiros em seu braço. Gostava de pensar que eles só haviam aprendido a se arrepiar depois que ele tinha chegado e como resposta aos cochichos em seu ouvido e dos beijos em sua nuca.
Gostava de ensaboar suas costas porque era esse o momento de amar suas omoplatas aparentes, pontiagudas e anguladas.
Apelidava suas cicatrizes - até aquelas ordinárias, deixadas pela catapora.
Precisava de seu corpo como um forasteiro de um mapa.
Era, depois de uma viagem sobre sua pele, um homem que conhecia o mundo.
Não precisava de bússola, de guia, de GPS, não precisava sair do lugar.
Ali, quando protegido entre seus seios, tudo o mais era pouco.
Ele poderia morrer. Desde que estivessem nus, para que o último tato do mundo fosse aquele: a pele dela na sua.
Por Mariângela
O teu cabelo não nega.
O grampo se perde
nas ondas teimosas
e fica a enroscar-se
nos tufos rebeldes.
Não negue esse cabelo,
porque nele eu me perco,
me escondo do que não quero,
me reencontro no teu zelo.
O teu cabelo, nego, não me nega
tamanho ninho, puro aconchego.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... PINGENTE

Por Mariângela
Na tribo do velho índio, a hora da roda era sagrada.
Crianças à volta do círculo à espera de uma nova lenda.
Ele cantava e dançava, fazia todas baterem palmas,
e depois contava a história, que os pequeninos levavam para seus sonhos.
O sábio índio contou de onde vieram os pingentes,
porque uma menina da tribo, que fora à cidade tratar dos dentes,
ganhou um lindo, de cristal e pequenino, depois de mostrar sua bravura
e não chorar da anestesia nem do motorzinho chato e barulhento.
E o índio ia contando...
"Uma vez, a índia que gostava de flores do campo,
perdeu-se na mata porque colhia só as mais raras.
A noite chegou muito brava, com ventos e relâmpagos.
E ela sentiu-se sozinha, amedrontada.
Ouvia o ruído do escuro, o bradar das árvores
e o sussurrar tímido das folhagens da paz.
Deitou-se numa clareira e ficou a pedir que os deuses a salvassem.
Acabou adormecendo e sonhou com um deus mágico,
que estava com ela, bem ao seu lado, acariciando sua face
e apontando sua lança poderosa contra todos os perigos da noite.
A menina acordou quando a lua começava a dar lugar ao sol,
que queimava lentamente as estrelas.
E viu aquele espetáculo lindo dessa troca da noite pelo dia.
Emocionada por estar viva e presenciar tanta maravilha,
deixou rolar uma lágrima e sentiu o deus mágico soprando-a no rosto,
com seu hálito doce, morno e imaginário.
A lágrima virou pingente e brilhava mais do que o sol que agora despontava.
Nunca mais a pequena se desfez daquele presente divino
e também passou a não ter medo de nada.
Só tinha medo mesmo de não mais chorar."
Por Gabriela
Flutuava o pingente escorrendo pra dentro do decote bronzeado da moça.
Escorregava, pendente...escondiam-se, parecia.
Ele olhava insistente, tentando identificar as formas. Do pingente, não dos seios dela.
Um movimento mais amplo e eles saltaram do vão da pele luzidia dela.
Ele viu. Uma âncora, um coração, uma cruz; colocados juntos numa fina argola. Pequeninos, ouro amarelo.
Riu, sem pensar. A beldade perdeu a aura sexy, ganhou contornos de moça bacana que sorri aberto, por sorrir.
Gostou ainda mais dela, assim sem conhecê-la.
E foi embora, à procura de uma que sorrisse pra seduzir, tão leviana quanto ele.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... ECLUSA

Por Mariângela
Aconteceu e tudo transbordou.
Era solidão, a noite que o escuro traz aos olhos de quem vê.
Não havia mar nem rio, chuva ou tempestades.
Apenas transbordou o que no infinito se acumulava,
em pequenos diques improvisados.
Um furo, um pequeno e único furo, dilacerou o que parecia tão hermético.
Abriu comportas e ampliou as dores que nem pareciam tão intensas.
E a eclusa em que acomodei toda minha tristeza, desfez-se num breve instante.
No mesmo momento em que senti o seu perfume rondando o meu ar.
Por Cristina
Nossa, como você é louco!
Olhou para os lados, para trás, não havia ninguém. Era ele mesmo...
E quem dissera aquilo? Tinha certeza de que escutara...
Nossa, como você é louco!
Interessante é que não se sentia tão louco assim (se bem que algumas vezes, chegara a duvidar da própria sanidade, mas há tempos não acontecia nada muito fora do comum).
Nossa, como você é louco!
Deu de ombros. Se era louco, melhor assim. Ruim seria não carregar em si nem um pouco de loucura. Aquelas pessoas, tremendamente previdentes, sabe como é? Uma daquelas não queria ser. Aceitava a loucura como um bem.
De qualquer maneira estava estranhando aquela voz que não sabia de onde vinha e que, não tinha duvidas, dirigia-se a ele.
Nossa, como você é louco!
Esta bem, sou louco. E daí? Por isso posso escrever o que se passa pela minha cabeça, posso falar qualquer pensamento, posso ter atitudes estranhas, posso ser ou não ser, fazer ou não fazer, sei lá, eu posso qualquer coisa quando posso ser louco. Sou mesmo. E daí?
Nossa, como você é louco!
Nossa digo eu! Quer parar com isso?
Começou a andar depressa mas a voz não parava de repetir a mesma frase, você é louco, você é louco, você é loucccccccccooooooooooooooo.
Foi quando encontrou um compartimento estranho no meio daquela ponte. Entrou, fugindo da voz, mãos nos ouvidos, fechou as duas portas, hermeticamente e sentiu-se sob pressão de ar...em um vácuo. Aonde estaria?
Encolheu-se, acho que vou ficar bem aqui e fechou os olhos. Acordou em um susto, nossa como você é louco, como você é louco, como você é louco!!!!!!!!
Quis correr. Tentou abrir as portas mas não conseguiu.
Socorro! Socorro! E a voz repetindo nossa, como você é louco!!!!!
Com as mãos nos ouvidos gritou, gritou alto e forte.
Nossa!! Como eu sou louco!!!!
Por Gabriela
Bette Davis, ‘I want to be alone’.
Perfeito, se a palavra fosse reclusa.
Mas a palavra é eclusa e meu cérebro não soube dizer o que.
Meu repertório emocional também não.
Fui pro Aurélio, ‘a Sylvia caprichou desta vez’.
Eu li e entendi o significado, ainda assim meu repertório emocional não deu sinal, não acusou nada.
Acho que nunca vi uma eclusa na vida.
Talvez em alguma reportagem, algum dia, será? O canal do Panamá tem eclusas?
Sei não. E não sei o que dizer sobre eclusas!
E nenhuma poesia quis se meter com esta palavra que parece, de repente, absurdamente perdida e estranha.
Não tenho histórico nem intimidade com uma eclusa, nem fantasiando. Curioso.
Meu cérebro recusou a eclusa. Trancou-se. Proibidas embarcações que desçam ou subam transportando eclusas por ele.
Eu bem que tentei.
Por Sócrates*
O dia da cidade baixa
O sol revelava uma manhã de maré vazia na capital dos absurdos. As mães acordavam as crianças, batiam palmas para os erês e acendiam uma vela para o santo e outra para o orixá da vez. As crendices da velha Bahia ainda perduravam da Capelinha de São Caetano ao Alto do Itaigara. Os homens voltavam do boteco, após uma rodada de cachaça e um prato da tradicional feijoada das cinco. Sem mais cerimônias, as baianas fritavam o acarajé de Exu e os filhos de santo arrastavam o bloco afro pela avenida sete. Pouco a pouco uma multidão encobria a Praça da Sé para olhar o vasto oceano do alto do Elevador Lacerda. O carnaval anunciava a festa de yemanjá, que ganhou novos afazeres após a onda vermelha que arrasou por inteira a lendária cidade baixa. O Mercado Modelo, o Forte de São Marcelo, o Solar do Unhão, a Ladeira da Montanha, o Terminal da França, a Feira de São Joaquim, os faróis e os calçadões de Itapuã e da Barra, as Sete Portas, parte da Avenida Paralela, o entorno do estádio de Pituaçu, a Boca do Rio, o Largo da Mariquita, a Ribeira, e todos os edifícios do Plano Diretor construídos na calada da noite na Câmara de Vereadores se foram como a utópica cidade perdida de Atlântida. Tudo que era sólido, cotidiano, virou pedra mole, ou simplesmente água. A Baía de Todos os Santos se deixou enganar pela brisa suave da maresia e pelo conforto passageiro das barracas de alvenaria. As turísticas praias agora são páginas de livros e estórias de anciãs analfabetas.
Mas, pela força divina das vigílias das comunidades evangélicas, as quermesses e novenas das beatas católicas, as oferendas tardias das religiões de matriz africana a Exu, e os recursos desviados de obras públicas para o soerguimento de uma eclusa, a maior do mundo, uma vez por ano, justamente no período do Carnaval, os filhos de Oxalá, Deus, Jeová, vivem novamente os ares da inarrável cidade baixa. A prática de saciar a fome com pão e circo também não se perdeu. Mudam os cães, permanecem as coleiras.
Uma vez por ano uma centena de embarcações é suspensa por um elevador, que esvazia um imenso território ocupado pelo oceano através de duas comportas. A primeira localizada na antiga Base Naval de Aratu; a segunda, na derradeira Lagoa do Abaeté.
Os terminais de ônibus aglomeram uma massa de pescadores, um novo costume adotado pelos homens baianos, que ao contrário do passado trocaram os abadas de outrora por uma rede e uma vara de pescar. Tudo fornecido pela prefeitura. Trata-se de uma política de resgate dos valores de uma época esquecida, quando os saveiros ainda eram importantes e as puxadas de rede um bem cultural. Os camarotes, andantes ou não, se adaptaram a nova realidade e se tornaram flutuantes, balsas banhadas por muita badalação e celebridades além mar.
Nas folhas repetitivas dos jornais, intelectuais e pseudo-intelectuais elogiavam a capacidade inventiva da população, que re-significava hábitos e dava novos sentidos aos rituais. O certo é que o trânsito continuava caótico e a paisagem cinza dos operários do metrô desenhava no céu de urubus os infindáveis "últimos reparos" da obra faraônica iniciada no século passado. A ladeira da preguiça estava veloz, tomada por uma quantidade incontável de pernas e braços. Para muitos, andar de quatro vinha bem a calhar. E o poeta, Castro Alves, salve, salve, chorava o destino desta absurda Bahia dos camburões e das empreiteiras. Apontava para o mar como quem acaricia Oxalá e diz: "'Stamos em pleno mar. Embaixo, o mar em cima, o firmamento. E no mar e no céu, a imensidade!". Estamos em pleno mar, Oxalá bebendo, Exu sedento e o baiano de Gregório de Matos carnaval adentro, fudendo.


*
Sócrates Gomes Pereira Bittencourt Santana é jornalista.
Obs: uma homenagem aos baianos e uma crítica ao Plano Diretor de Salvador.
Por Sylvia
Nasci ali, bem no meio. Minha função é de comporta, fazer dique para num dado momento liberar tudo o que represei.
No calor, minha pele se abre, começo a porejar e um rastro brilhante se desenha aí, habitação de liquens e musgo. Isso me diverte. Prazer em ser escoadouro. Às vezes o trabalho é tranquilo, em outras vira borbotão, corredeira, catarata, cachoeira, enchente, dilúvio.
Quando me abro, inundo o lado de lá, trazendo verdor ou morte. Depende de minha vontade.
No momento, estou fechada, pois no inverno devo fazer provisão para outros tempos, eclusa que sou.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É...GUERRILHA

Por Sócrates
Um homem sozinho é uma idéia solta. Um vento que passa. Um sopro. Uma poesia.Diante das trevas dos dias, deixei o suor descansar nas ventas. Respirei.Parei um instante perante a tela.Sufoquei sem sentir sílabas sintomáticas. E engoli em pequenas doses anos de angústia.Driblei o fim do dia e encontrei a existência das coisas sem sentido.Tentei procurar os significados, mas, aceitei a derrota para o inevitável.Restou tempo, sobrou tempo. Que fazer?Guerrilha.Neurônios cybernéticos invadiram a tela. Viraram isto.Percebi que não tomei as palavras. Não são minhas, não são suas.De quê valeu a guerrilha?Um assalto. Pouco, é verdade.Mas, valeu. Valeu sentir as sílabas tomando a tela e dizendo:"São minhas. São nossas".Se as palavras são "o poder", então sempre serei o poeta das guerrilhas.
Por Mariângela
Vez ou outra me baixa o Che Guevara.
Só falta a boina e o charuto.
Quero revolucionar regras e mudar tudo.
Fico entendiada com os domingos mornos.
Vontade de estar na trincheira,
desafiando a preguiça que me ataca quando menos espero.
Maldita traiçoeira, mais sedutora a cada dia!
O Che logo dá lugar a mim mesma,
me sinto velha, com ideias e ideais 'demodês'.
E a bunda gorda de minha alma,
sentada na cadeira desse tempo lento,
me afasta do sadio desassossego.
Por Gabriela
Não me mostre as tuas feridas.
Somos todos abatidos, a todo instante, nesta guerrilha insana disfarçada de rotina.
Morremos um pouco, em pedacinhos, não de todo; não de uma vez.
Temos segundas chances. Aproveitamos algumas vezes. Em outras, continuamos morrendo.
Não sei se o melhor dos estrategistas se safa. E vence. E vive.
Não sei.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... ENCABULADA

Por Sócrates
Na contramão da rótula do abacaxi. Imaginem só, a menina, uma daquelas piriguetes da avenida sete, inventa de procurar conversa com o cobrador. O motorista - cabra cheio de história e esculhambado - falou para o cobrador deixar a menina passar sem muito cheiro mole, mas, o cobrador avisou:
- Ou dá ou desce?
A menina explicou que não dava e que o corno do namorado dela ia ficar sabendo da ousadia do cobrador.
- Você é cheia de história viu menina
- Aonde que dou para você.
- Aonde, aonde você vai ver aonde.
Desceu toda remelexida do ônibus, antes do motorista gritar boazuda.
Encabulada, subiu a ladeira do Cabula na terceira e avisou:
- Tá rebocado que vou fuder com esse cobrador. Eu vou lenhar com ele. Ele vai ver o dele.

Obs: fuder significa vingança na Bahia. Também.
Por Mariângela
Por onde você andará?
Foi a pergunta que me veio no meio de tantas lembranças
enquanto eu ouvia a música de Benito de Paula.

Eram os anos 80, eu com 19 anos, universitária.
Você, o responsável pelo laboratório de audiovisual da faculdade.
Todas as noites eu passava lá, pra bater papo, tomar café.
Até que um dia você se revelou e eu perdi o chão...

"Você ficou sem jeito e encabulada, ficou parada sem saber de nada,
quando eu falei que gosto de você..."


Surpresa e sem graça, já que você tinha quase 20 anos a mais
do que eu. Nunca te vi dessa forma...

"Você olhou pra mim e, decididamente, você falou tão delicadamente,
que eu não devia gostar de você..."


Lembro que me emocionei com o que me disse,
o quanto estava envolvido e o amor que sentia.
Uma lágrima minha rolou mas você enxugou-a com afeto
e me deu um abraço carinhoso.

"Mas a vida é essa e apesar de tudo,
gosto de você e que se dane o mundo..."


Em seguida, me deu um Sonho de Valsa - porque sabia que eu adorava -
apagou as luzes, fechou a porta e me levou até o ponto do ônibus circular.

"Quem sabe se nessas voltas que essa vida dá,
você pode mudar de idéia e me procurar..."


Falei que era melhor superar isso,
que alguém bacana logo apareceria e te faria feliz.

"Eu vou ficar aqui, até madrugada voltar e trazer você pra mim..."

Te acenei do ônibus, enquanto você me olhava da calçada.
A música parou de tocar e eu voltei para os 28 anos depois,
querendo muito saber por onde você andará....

"Eu vou ficar aqui, até madrugada voltar e trazer você pra mim..."

Para Waltinho
Música: Apesar de tudo - Benito de Paula
Por Gabriela
A palavra encabulada se recusou a sair.
E era tão importante, naquele momento de decisão, dizer.
Faria a diferença entre o ensolarado de uma tentativa e o oco de sempre.
Mas o despreparo para se deixar invadir por um campo de girassóis foi maior.
Porque a aridez já tinha fincado raízes frondosas. Porque estar um pouco morto é quase imperceptível a olho nu.
E a palavra encolhida, engolida antes mesmo de ensaiar brotar, determinou o destino dos dois.
Ele virou as costas, destruído, pelo amargo do que parecia ser uma rejeição.
Ela nunca mais saiu dali, daquele minuto seco, pelo triste de não ter conseguido achar a palavra ‘sim’.
Por Cristina
Não tinha medo de nada
e com nada se detinha.
Atirada, saia sempre na frente,
falava o que lhe passasse pela cabeça,
conversava com quem cruzasse seu caminho,
contava casos,
ria alto.
Mas quando ele aparecia,
que mudança!
Que timidez,
que coração disparado,
que aflição sentia!
O rubor tomava conta,
as mãos tremiam e emudecia,
sem coragem de levantar os olhos.
Quando ele aparecia dava-se conta
de quanto o mundo estivera cinza sem ele.
Então pensava em festa,
em fogos de artifício,
em musica alta,
em rodopios e risadas.
Pensava em pegá-lo pela mão
em lhe contar suas historias,
em escutar o que dissesse,
em acarinhá-lo,
mimá-lo,
abraçá-lo,
niná-lo.
Pensava em ficar ao seu lado,
velar seu sono,
acordá-lo com musica e beijos,
e olhá-lo,
cada detalhe,
cada gesto,
cada sorriso.
Pensava.
Mas quando ele aparecia,
olhava o chão encabulada,
nada demonstrava
e nada dizia.
E então ele se ia
pensando em pegá-la pela mão,
em lhe contar histórias,
em acarinhá-la,
mimá-la
e olhá-la,
cada detalhe,
cada sorriso....

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... COMPLÔ

Por Gabriela
Existe este complô de pequenas coisas que você faz pra me deixar feliz.
O beijo que me acorda de manhã quando ainda não mandei meus sonhos embora.
Um enroscar quente em meu corpo quando ainda nem percebi que a madrugada se foi.
O sorriso aberto na penumbra do quarto quando meus olhos ainda se rebelam pra permanecer abertos.
E aquelas palavras doces engraçadas eróticas carinhosas intensas leves molhadas doidas que me arrancam gargalhadas contrariando minha birra preguiçosa das primeiras horas ainda escuras da manhã.
Mais um sorriso aberto depois que você sai do banho, como se fosse a pessoa mais feliz do mundo e aquele dia tivesse nascido pra ser nada mais do que perfeito.
E o jeito que pede a minha opinião sobre a sua roupa.
O elogio ao meu rosto quando ele ainda está amassado e é uma bagunça o meu cabelo caindo na cara.
Beijinhos de despedida na porta quando é inevitável a partida. Olhar e desejo sincero de um dia bom.
Um MSN ao longo do dia, pra um beijo, pra um oi, uma palavrinha que seja, saber que você está comigo, onde estiver.
E mais tantas pequenas imensas coisas nesta trama tão bem urdida que é a sua existência.
Tudo pra provar que eu estava enganada, redondamente enganada, quando acreditei que alguém assim e esta minha vida de agora fossem uma dessas ilusões que de tão boas, a gente só ouve falar.
Por Cristina
Há vezes em que o universo conspira contra.
Parece de propósito,
parece mentira,
parece complô.
Nessas horas tudo o que se diz adquire sentido oposto,
tudo o que se quer transforma-se no não querido,
tudo o que se deseja volta trocado.
O universo trapaceia,
brinca de nos fazer de bobos,
dá rasteira,
e ainda ri da nossa fúria.
Então é preciso ter coragem
encarar de frente,
agüentar o tranco
e desfazer os nós.
Porém o mais difícil
é que nós são compostos de 2 barbantes
e sempre há um que teima
em não se querer desatar.
Por Mariângela
Minha irmã nasceu quando eu tinha 8 anos.
Era uma fase tão minha, de ganhar espaços na vida de meus pais,
que essa notícia caiu como uma bomba: teria de, novamente, dividir tudo.
O tempo passou, a barriga de minha mãe cresceu
e a menina chegou gorda e bonita — ainda essa: BO-NI-TA!
Não sabia bem como fazer pra que ela não me afligisse, não mexesse nos meus planos e sonhos.
Foi assim que me uni ao meu irmão, dois anos mais novo do que eu.
Ele também andava meio incomodado, mas como era do tipo calado, engolia a seco.
Sem qualquer plano nem desenho de explícitas estratégias, armamos um complô.
Cada dia um assumia o papel de vilão e escondia a chupeta da mana caçula,
que chorava sem parar até que era socorrida pela minha mãe.
Não falávamos nada, eu e meu irmão calado.
Os olhares trocados diziam tudo: "missão cumprida, câmbio!"
"Até amanhã, câmbio e desligo!"
Hoje vejo complôs bem mais complexos a minha volta.
E bate uma saudade danada do tempo em que eu escondia chupetas.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É...COMUM

Por Mariângela
Ele viu nela sentido para tudo,
ela encontrou nele tudo com sentido.
Caminharam os primeiros passos em plena sinergia.
O sol sempre brilhava quando suas bocas se tocavam
e não havia mágoas, medos, só o impulso de jogarem-se um no outro.
O tempo foi crescendo, ampliando,
fazendo-os olharem-se sem véus, como raio X,
em que a tolerância se esvai como o ar do morimbundo que agoniza.
E os passos já não estavam integrados
nem os sonhos entrelaçados.
Ele via nela total falta de sentido
Ela perdeu-se do tudo que antes ele era.
E o traçado de uma história infinita, promessas eternas e benditas,
morreu ali, numa parte qualquer do caminho,
num canto abandonado da alma, numa veia sem sangue,
no pulso sem batimento, no velho lugar comum.
Por Gabriela
A Net me brindou com um filminho água com açúcar neste sábado chuvoso. Amor aos pedaços.
O protagonista, John Favreau. Um cara comum.
E isso tornou a história palpável. Aquilo sim, é real.
Parece plausível viver uma história de amor com o John Favreau, a gente cruza na rua com Johns Favreaus a todo instante!
A maioria deixa passar, na ilusão de que vão achar Pitts e Clooneys. Uma pena.
Não que beleza demais seja ruim ou signifique falta de conteúdo, não.
Mas intimida.
Com o John Favreau eu saberia o que fazer. E adoraria.
Um cara comum. Nem por isso menos charmoso e encantador.
Um cara comum que me saberia tão comum quanto. Real.
Por Sócrates
As estrelas estão soltas e passeiam nas nuvens baianas como se fossem os novos baianos ou estrelas novas. Caetano está pra lá de Bagdá, Gil na crista da onda cybernética, Gal ainda canta divinamente, Bethânia ainda continua com a aquela cara de cárcara, Tom Zé não esquece o tropicaos de Rogério Duarte e Moraes, Baby, Galvão, Paulinho Boca, Pepeu, Jorginho e Dadi cantam diurtanamente João Gilberto no apartamento da Barra.
Resolveram elaborar um roteiro chamado cinema falado e fizeram tudo com muita parafina e LSD.Glauber Rocha se balançou no caixão e pediu um canja de galinha. Tudo muito comum, como os saveiros da praia de Buraquinho, onde Barra Vento ecoou o cinema novo. Como diria Rauzito: "É muita estrela para pouca constelação".

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... IDIOSSINCRASIA

Por Cristina
Não sei de onde veio meu espírito, que corpos habitou, que galáxias conheceu, que curvas trilhou.
Não sei aonde aprendeu o que me trouxe, que cursos freqüentou montado em seus cavalos, que conversas teve que lhe abriram os olhos da mente.
Não sei o que fez, se foi bom ou ruim em outras vidas, se já evoluiu nos degraus espirituais, se fez o bem feito ou se procurou safar-se sempre.
Não sei nada do que foi antes de escolher-me e nem mesmo sei por que motivo fui a escolhida para tê-lo em mim.
Não sei.
Mas sei que foi ele e só ele que trouxe em mim todas as idiossincrasias que acumulou no seu caminho e que cabe a mim decidir o que fazer com elas.
Saberei?
Por Mariângela
Indio quer espaço:
orar aos deuses
dançar no mato
banhar no rio
caçar um pato
curar as almas
fazer o parto
casar na oca
catar piolho
plantar mandioca
sonhar na rede
beijar na boca
temer a morte
chamar a chuva
andar de bote.
Indio índigo,
idiossincrasia selvagem.
Por Gabriela
Palavrinha polida pra definir chatice, mania, esquisitices.
Não só.
Jeitinho de encarar a vida, de dizer não, de defender uma idéia. De reagir a este mundo, aos outros.
Marca registrada. De cada um, de todo mundo.
Meu mau humor característico de manhã cedo. Meu pavor de me ver parte desta massa acéfala que nos cerca.
Eu sou assim mesmo. Chata, irritada, impaciente. Não sei se mudo, não.
Talvez mais parte da média do que gostaria.
Me deixem aqui, tentando me conformar com isso.
Por Sylvia
Gostaria de me casar com véu e grinalda, de obedecer meu marido, de ter muitos filhos, de gostar de minha sogra, de ter tres cachorros, tres gatos e dois passarinhos. Gostaria de gostar de ir à missa, de rezar todos os dias, de fazer tricô e crochê, de fumar muito, pois isso distrai, de jogar carta, de dançar, de dar risada, de chorar quando sentisse tristeza, gostaria de tudo isso e mais ainda: de viajar, de fazer compras, de me tatuar, de tomar sol e banho de cachoeira, de fazer amor, de tomar chuva e sorvete.
Mas o médico disse que tenho idiossincrasia de tudo isso.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... GOL

Por Gabriela
Do meio do campo, o goleiro parecia um pontinho no mar de verde.
De uma trave a outra, distância imensa, parecia ainda menor, solto e quase náufrago.
Um chute dali, tão improvável, entraria no gol?
Esporte em que segundos valem ouro, o artilheiro nem pensou.
Largou a perna esquerda, numa potência extraordinária, imprimindo uma trajetória curva à bola.
De grão de areia, o goleiro se fez onda quebrando na praia com estrondo de vagalhão.
Agarrou a bola e seus 190 km/h de potência no espaço imenso, esticando cada milímetro de seus braços.
Caiu no chão tal qual fruta madura, a bola encravada no peito, caroço exposto.
Salvou o jogo, o campeonato, a pátria, o emprego do técnico.
E na memória de muitos, ficou eterno.
Por Mariângela
Trave e goleiro.
Suor pingando pelo corpo.
Tanto correu que foi derrubado na áera. Pênalti.
Pensou na mãe que o assistia em casa.
Também lembrou da esposa, que andava meio desgostosa com ele.
Olhou ao redor e viu o estádio cheio, sangrando emoção desenfreada,
de ferida recente, aberta no último jogo, quando o time perdera feio.
E este era decisivo para mantê-lo na primeira divisão.
Eram 42 minutos do segundo tempo, e mais 3 de prorrogação.
O gol seria a consagração, um aumento de salário, o valor das luvas,
a possibilidade de um contrato fora do País...'vériuel'!!!
O filho, ainda bebê, estudaria em escolas caras e seria um bem sucedido.
O irmão, doente e deprimido, poderia recuperar-se numa clínica 'de bacana'
e sair do manicômio público, onde estava há uma década.
Acabaria com as dívidas que fez para comprar o Audi A6 e a TV de plasma.
Deslancharia finalmente rumo ao sucesso e aos sonhos mais distantes,
como andar de helicóptero ou comer em restaurante com conta de vários dígitos.
A mulher faria plástica e voltaria aos tempos de gostosona, quando o seduziu no baile funk.
Sim... seria a mudança total, o reconhecimento dos vizinhos que duvidavam de seu talento.
O coração batia no compasso da bateria da querida escola de samba.
Esperou o apito que separava o antes do depois, o fracasso da vitória completa.
E assim foi.... apito dado, bola na mira, goleiro do outro lado, as traves posicionadas,
a galera vindo ao delírio e as imagens passando pela mente em velocidade acelerada.
Chutou e fechou e abriu os olhos. Total silêncio no ar.
Viu a trajetória da bola bem devagarinha, indo ao encontro de seu futuro.
A bola quicou no chão, antes de prosseguir, e atrapalhou o adversário.
Mas a trave segurou sua entrada e ela saiu para fora, sem antes bater no goleiro. Escanteio.
Desolado e vaiado pelos milhares de torcedores enfurecidos, foi chorando para a área, posicionando-se na defesa.
E num passe de mágica, a bola que veio do corner, com efeito, chamou-o à cabeçada.
O gol aconteceu aos 47 minutos e sua vida nunca mais foi a mesma, tamanho o susto.
E, hoje, é ele quem está numa clínica 'de bacana'.
Por Sócrates
Minha nega não fala comigo desde primeiro de janeiro
Ela se manda pra farrar, eu fico em casa, fico de copeiro
Ela tá emburrada, de cara fechada, não dá nem um cheiro
E quando vou pra pelada, ela fica danada, fico no chuveiro
Ela finge que não, mas no seu coração ainda sou artilheiro
Mas, acontece que na hora do gol eu sou Bahia e ela é rubro-negro

Sai de centrovante, pra médio volante, agora sou zagueiro
No dia de domingo, não tem feijoada, a casa é um vespeiro
A nega não fala, meu peito se rasga, pareço goleiro
E quando vou pra pelada, ela fica danada, fico no chuveiro
Ela finge que não, mas no seu coração ainda sou artilheiro
Mas, acontece que na hora do gol eu sou Bahia e ela é rubro-negro

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... INSINUANTE

Por Cristina
Costumava insinuar-se.
Principalmente quando lhe subia pelo corpo aquele calor que a fazia pensar na entrega, naquela vontade de imiscuir-se, no abraçar o desejado abraço, nas mãos deslizando pelo corpo dele e o deslizar das mãos dele no corpo dela, nas vontades sussurradas, no riso alegre, no beijar o beijo da boca que beijava numa mistura de não querer nunca parar o beijo dos dois.
Costumava insinuar-se.
E sempre e muito quando bebiam um pouco, sempre conversando sobre o passado de cada um e sobre as idéias e o futuro que teriam juntos e sobre os desejos que tinham, as mãos agarradas, os pés entrelaçados embaixo da mesa, os olhos um no outro e cada demonstrar dela originava o mostrar dele da vontade que tinham de nunca acabar aquele amor que sentiam os dois..
Costumava insinuar-se.
Inda mais quando o sol e a água salgada esquentavam seu corpo e o barulho do mar despertava todos os seus sentidos e sabia dele ali ao seu lado sabendo a sal, e sabia que a cada movimento seu viria um dele sempre completando o que ela começava e sempre querendo que começasse o que fosse e de qualquer maneira, sempre ele sabendo a ele mesmo renovado da mistura dos dois.
Costumava insinuar-se.
Costumava.
Por Gabriela
Essa sua índole insinuante tinha muito charme naquela época em que tudo que eu queria era que você me quisesse. Minha carência melosa, fantasiada de ‘o grande amor da minha vida’, se agarrava às suas promessazinhas tal qual náufrago ao isopor áspero que talvez lhe salve a vida. As suas entrelinhas e frases sugestivas, nunca finalizadas eram um bálsamo pra mim. Aquele tempo passou. Hoje sou mulher de frases inteiras, intenções claras. De pontos finais quando o único que nos salva e redime é interromper o rastejar patético pelo amor de alguém. A gente ama se ama. Se pode. E sabe, sem precisar palavra – nem inteira, muito menos meia ou podada por reticências. Ama.
Por Mariângela
O decote era tão insinuante que seus olhos lá se perderam, atravessaram o vale, encontraram-se nos picos, deitaram nos bicos e se deixaram.
Tudo muito intenso, mas muito rápido. Rápido até a mulher se levantar e atravessar a sala requebrando as cadeiras fartas. Rápido até ele se tocar que ali nada podia ser sonhado. Rápido até acordar do transe mágico e ouvir a voz repetidas vezes: 'venha, Rex, hora de ir pra casa!'
Muito rápida essa sensação meio humana. E foi embora, com o rabo entre as pernas.
Por Sócrates
O ar condicionado resfriava os seios. Uma sútil denúncia da pele de pêssego apagava o vestido vermelho. Os homens fumavam charutos cubanos enquanto destilavam uísque goela abaixo. Bebiam seco. Logo o burburinho.
- Por favor, um drinque.
A taça de cristal deixou se envolver pelos lábios. Quem não se entregaria? Teria pensado certamente um leitor mais excitado.
As pernas cruzadas revelavam apenas a destreza das horas fugidias.
Um rapaz ousado deitou sobre a mesa uma cédula de cem.
- Fique com o troco, disse a estonteante madame.
Ergueu a mão esquerda. Todos voaram como se fossem urubus.
Esboçou uma reação de desânimo com os rapazes.
Anotou no verso do gardanapo um recado. Dobrou e fez um bilhete. Para quem seria?
Saiu do salão como se fosse uma divá. E não era? Não se sabe.
No verso: "Volte para casa seu cachorro. Fique sabendo: não insinuo, faço".
O recado estava dado. Na porta um carro languido abraçava o bêbedo de rabo entre as pernas que saia do bar. A mulher gargalhava no volante e jogava porta a fora os bilhetes daquela noite.
Por Sylvia
Chegou vestida com uma capa preta, brilhante. A cabeça coberta com capacete negro encobria suas feições. Mancha escura, movia-se com segurança, embora desse algumas paradas para sentir o ambiente. Açucena, que tomava conta da chapeleira, a viu entrar; no entanto o ambiente de luz baixa confundia as formas e Açucena já não enxergava direito. A de capa preta, insinuante, aproximou-se com confiança e parou junto ao canto do balcão. Seu erro foi chegar perto demais. Açucena arrepiou-se e deu um grito, pegou o chinelo ( trabalhava de chinelo atrás do balcão) e bateu e bateu até esmagar aquela vestida de capa preta brilhante coitada, coitada, é só um filhote! dizia com asco e piedade ao ver o líquido escuro que saía do corpo daquela de capa preta.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... SOMBRA

Por Sócrates (texto 1)
A polícia bateu na porta. Perdeu, perdeu. Encontraram a televisão ligada chuviscando sinais imperceptíveis da pós-modernidade. Uma sombra de imagens intransponíveis. Abaixo um aparelho de DVD e um disco dizendo: não assista. Sem pestanejar o policial fez o disco rodar. Uma mensagem subliminar:
"Todos possuem sombras e as sombras são as partes cinzentas das nossas almas".
Cruz credo! Vixe Maria! Danocê! Porra nenhuma, conversinha mole.
Saíram pelo morro à procura dos donos do disco. Ao caminharem perceberam a ausência de algo. Cadê a sua sombra P1? Estou vendo a sombra do cano, mas não vejo a sua sombra. Que porra é essa? Pegadinha agora não caralho!
Retornaram para a casa dos traficantes. A televisão estava desligada. Os cara tão aqui caralho! Corre, corre. Um vulto passou pelo capitão da operação Nevoeiro. E afinal, quem escolheu o nome dessa operação?
Pergunta sem resposta. É coisa do Pimentel.
A televisão acendeu. Chacrinha balança as bundas gordas de Rita Cadilac e Gretche.
Isso já faz tempo pra caramba! Que porra é essa?
Nada, nada. Vambora, vambora. Saíram, mas, antes de saírem uma bala atravessa o corredor e atinge a televisão. Uma profusão de imagens invade a boca de fumo. P1 a sua sombra saiu por ali, corre caralho, vai pegar ela porra. Vaza, vaza.
P1 estava deitado no sofá com o controle remoto. Apertou power e desligou a tevê. E disse: deus não é tão bom e o diabo não é tão ruim. Pegou a tevê e jogou pela janela. Porra de filme de ação. Vá a merda.
Por Cristina
Aprendera a proteger-se desde cedo, medrosa que era. Mas mais do que medrosa era carente e as proteções lhe faziam bem.
Assim, escondia-se nas cobertas, trancava as portas, nunca se colocava como primeira da fila, sentava-se no banco de trás dos carros, não carregava guarda-chuva para poder andar na carona dos outros de braço dado, dava passagem ao entrar em qualquer lugar para não se expor entrando em primeiro lugar, fazia que não tinha entendido para que ao ajudá-la lhe fizessem companhia, encolhia-se para caber em elevadores cheios de gente.
Mas mais do que tudo, não saia sozinha de casa se não fizesse sol pois quando na rua andava sempre de encontro ao sol, para fazer-se acompanhar de sua própria sombra.
Por Gabriela
O Rodrigo escreve revoltado contra as mulheres no comentário de um texto de uma grande amiga num blog ótimo. Que nos achamos ‘grande coisa’ e hasteamos a bandeira da igualdade entre os sexos e fomos pro mercado de trabalho mas no fundo, no fundo, ainda estamos à espera do príncipe encantado e ‘precisamos’ dos homens. Que vivemos não, sem eles.

Estamos todos fartos desta história, não? Homens e mulheres. A máxima de que somos de ‘planetas’ diferentes também está mais que provada e exaustivamente debatida. Então chega de rodar em círculos, certo?

Nem sei o porquê, resolvi escrever pro Rodrigo (não, não sou amiga dele, nunca vi mais gordo, nem sei de quem se trata...somos anônimos um pro outro). Não pra endossar a gritaria feminista (que em alguns casos ainda soa histérica...me perdoem colegas de gênero, mas é verdade sim...), mas pra tentar ser solidária com ele e com as mulheres, os seres humanos, em geral – ninguém precisa de ninguém, mas que delícia a gente ter alguém e curtir esta coisa doida e estranha que é viver um relacionamento homem-mulher, né não?

Não adiantou, não. Nem sei se o Rodrigo me leu. Ele está mesmo contra o mundo das mulheres. Por um milhão de coisas, pode ser. Por uma só, também. O fato é que, nas entrelinhas, ou nas palavras da Hilda Hilst, que ele mesmo citou, deu pra sacar que a raiva do Rodrigo é dor. Uma sombra que ele carrega, daquelas que ficam depois de um coração partido. Ele também deve ter esperado a princesa. E deve ter se esfolado quando descobriu que elas não existem.

Minha solidariedade a você, desconhecido Rodrigo. Também já vimos este filme antes, muitas vezes. Mais que ver; vivi, vivemos isso, na carne, todo instante. Espero que da sua raiva, um dia, você descubra que quem espera príncipes e princesas é porque nunca se achou, não se vê, mal se conhece. O ideal não existe. E amar gente de carne e osso, a começar por nós mesmos; imperfeitos; é só o que resta. E é tanto.

Sossegue. Inspire-se na sábia Hilda, que você mesmo nos trouxe, e ‘pare de ganir diante do Nada’, meu querido.
Por Sylvia
Um dia de sol e ela sumiu. Minha sombra foi embora sem me avisar, sem pedir licença. Fiquei triste, fiquei indignada, perdi o equilíbrio. Naquela mesma noite, a lua já tinha se posto, senti algo denso e alumbrado encostar-se a mim. Sou eu mesma, você não está me reconhecendo, mas sou eu mesma, não se assuste. Só vim me despedir, afinal vivemos juntas por tanto tempo, e aí me deu um cansaço, fui embora assim sem mais nem menos. Voltei só para me despedir, para lhe dizer que foi ótimo o tempo em que vivemos juntas, não tenho queixas de você, delicada que sempre foi, gentil, elegante. Mas cansei, cansei de ser sua sombra, cansei de ser sombra. Ontem ao abandonar você, sem rumo que estava, surgiu um espaço de luz. Deixei de ser sombra, agora sou luz.
Por Mariângela
Quando acordei, não percebi.
Mas conforme o dia fluia, ela estava ali, desencontrada.
Minha sombra teimava em ficar do lado errado de meu corpo.
Fiz cálculos amadores sobre seu reflexo no chão frente à posição do sol.
E conclui: sim, ela estava do outro lado, desrespeitando todas as lógicas.
Tentei driblá-la, pular num ímpeto para um outro lugar, mas a danada me percebeu.
E lá se postou, aversa ao que deveria ser: apenas a minha calma sombra.
Senti que essa rebeldia fazia algum sentido. Afinal, por anos, ocupava o mesmo e lógico lugar,
mera sombra passiva a tudo e todos, apenas refletindo esta pequena que insisto em ser.
No lugar de minha sombra, eu já teria quebrado as regras antes. Mas que bobagem estou dizendo?
Eu? Justo eu, quebrando regras? Ora! Se as quebrasse, a sombra não teria se cansado de mim!
Era hora de mudar esse destino talhado em mesmice.
E foi assim que resolvi ser a sombra de minha sombra.
Por Sócrates (texto 2)
Em tudo reside a maldade. Uma névoa de dúvida sobre o caráter de um amigo. Um inimigo próximo, vivo, sagaz e rasteiro. Entre o sentido e o significado a palavra dribla a compreensão da razão e nas entrelinhas da loucura revela a surpresa das cenas inesperadas, contidas, retidas no breú das horas sem saída, sem ponteiro, sem data marcada. É como um susto. És tu, então? Finalmente, revelou a verdadeira face. Nunca se sabe. Às vezes nem o tempo escapa. Resta a sombra. A traidora. Sempre ao lado. Engana a leveza da lua e o brilho do sol. Esconde o que deveria ser visto a olho nú. Mas, olhe, preste atenção. Nela reside todas as coisas importantes sobre alguém. E se numa dessas manhãs cinzas não percebê-la...cuidado. O diabo está no canto, como quem ri sozinho, como quem aguardo o momento exata para cobrar uma dívida. O pior momento. O pacto está feito e o endividado fará qualquer coisa para sanar essa dívida, interminável, impagável. Para sempre será apenas uma sombra. Cinza, imprecisa e fulgaz.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É...PANE

Por Mariângela
Não juntava mais as letras
e as sílabas teimavam em não fazer sentido.
As frases não tinham pé, descabeçadas.
Pontos e vírgulas fugiam entre aspas e reticências.
Pane total no meu discurso pronto e certo.
Desconstrução de idéias tão elaboradas.
Assim morri para o lógico e pleno.
E, hoje, engatinho, faço rimas simples
e recomeço, tropeço no meu beabá.
Por Gabriela
Pane da rede elétrica.
Foi muita água, muita lama, muito raio.
O bairro todo às escuras.
Da sacada, viam-se as cabecinhas nas janelas e algumas velas já bruxuleando.
Bonita de ver, a falta de luz. A elétrica.
O silêncio do escuro tomou a casa toda.
Nem televisão, nem computador, nem cd player.
Eu perderia o último capítulo da novela e o filme da noite.
Eu não conseguiria navegar pela internet, bater um papo virtual, fuçar os orkuts alheios.
Nem uma música de fundo eu teria de companhia naquelas horas escuras.
Achei o caminho do armário da cozinha, uma garrafa de vinho tinto ia pela metade.
Me larguei no sofá, taça na mão. As velas lá longe, fracas e mágicas.
Nunca tanto prazer num acabar de luz.
Nunca tanto gosto em me encontrar no silêncio, no escuro, no esquecido da rede elétrica.
Por Sócrates
Uma pane no sistema de e-mail´s
uma semana sem poesias, ensaios, artigos e ficções no fim do dia
Os celulares também não respondem
Sem explicações, nem "não deu, estou sem net"
Não, não
Uma pane no sistema de mensagens eletrônicas
O dia escapa, a noite passa e nada
Uma pane no sistema de correspondência digital
Uma semana, duas semanas
Situações drásticas exigem medidas drásticas
Uma Olivetti e uma hora inteira para encontrar um tomada
Finalmente, pronto.
Após uma fila e um "cusparada" a carta está pronta.
Manda para São Paulo
Mas, senhor?
Manda menina, vai. São Paulo.
Estamos com um problema no sistema senhor.
Não é possível. Terei que telegrafar?
Por Cristina
Acho que o motor pifou. Provavelmente foi isso, não sei como dizer.
Começou com um cansaço, sensação de repetir os dias, acordar na mesma hora, o mesmo caminho...Quando percebi fazia o caminho sem raciocinar, e quando chegava ao destino levava um susto. Como se o carro fosse sozinho, coisa estranha.
Ao chegar movimentos iguais diariamente, guardar a bolsa, colocar óculos e celular sobre a mesa, ligar computador, buscar água enquanto e-mails baixam, sentar com o corpo reto para não ficar com dor nas costas, tomar água a cada uma hora, atender telefones falando meu nome, responder e-mails e não deixar nenhum assunto para depois, ler e-mails pessoais, não demorar muito tempo com coisas pessoais, cafezinho no meio da manhã, almoço com as mesmas pessoas na mesma hora...Sem contar o e-mail particular para ele, por que mando sempre na mesma hora? Se não responder o dele ele acha que não estou me importando e mais tantas coisas, tantas coisas que se for descrever até o fim do dia acabo constatando coisa pior do que já constatei.
Resolvi parar de repetir: não colocaria a bolsa no mesmo lugar, não faria o mesmo caminho e mais não a tudo o que se seguia na lista de constatações.
Mas foi quando saí de casa que o imprevisto aconteceu. Não consegui colocar o pé no acelerador. Fiquei parada na porta da garagem, imóvel. Procurei conter meus pensamentos mas foi impossível.
Pane, terror, tristeza profunda.
De qualquer maneira o caminho seria sempre o mesmo e o computador teria de ser ligado e os e-mails lidos e o trabalho realizado e todo o resto, todo o resto e o resto todo que se repetiria, sempre.
Respirei fundo e fui em frente, como se passo a passo, como se com a pressão baixa, como se em esforço supremo. Mas fui, secando as lágrimas uma a uma.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... PLANILHA

Por Sócrates
Faltavam dez segundos para bater o ponto. Érica passou o cartão. Abriu a sala e esperou o secretário de governo entrar porta adentro. Pumm!
- Ligue para a prefeita.
Gritou da sala. Érica pegou o telefone e ligou para o secretário. Perguntou:
- O senhor quer falar comigo secretário?
- Eu pedi para você ligar para a prefeita.
- Pois não.
Desligou o telefone. Ligou para o gabinete da prefeita e transferiu a ligação. Vinte minutos depois o secretário saiu correndo pelo corredor esbravejando.
- Cadê a porra da planilha?
Chegou a hora do almoço. Uma hora de descanso. Dona Érica pegou a marmita e esquentou no micro-ondas da copa. Dormiu dez minutos e votou para a sala. O secretário chegou e pediu para Dona Érica telefonar novamente para a prefeita.
- Não encontrei a planilha prefeita.
- É um projeto de milhões secretário.
- Pois prefeita. Não encontrei a porra da planilha.
- Isso são termos secretário.
- Desculpas, prefeita.
- Desculpas não vão resolver o nosso problema secretário.
- Mas, será...
- O senhor me sugere alguma coisa secretário. Passar bem então.
No outro dia o secretário de governo assinou o pedido de exoneração da prefeita. Ele seria o exonerado.
Mais tarde, o novo secretário ocupou a pasta.
- Dona Érica, por favor, a senhora poderia relacionar o conjunto de ações desta secretaria?
- Pois não secretário.
- Desde já, obrigado Dona Érica pela destreza.
- É apenas o meu dever secretário.
Mais tarde o secretário se depara com o principal motivo da exoneração do ex-secretário. A Planilha estava com Dona Érica.
- Dona Érica?
- Pois não secretário.
- Cadê a Planilha?
- Na sua mesa secretário.
- Mas, Dona Érica. Essa planilha sempre esteve contigo?
- Eu arquivo todos os documentos produzidos pela secretaria senhor.
- Mas, por quais motivos o antigo secretário não detinha esses documentos?
- Ele nunca pediu secretário.
- Obrigado Dona Érica, vou anotar isso.
- Secretário?
- Sim, Dona Érica.
- Mais uma coisa.
- Prossiga.
- Ele nunca pediu com educação secretário.
- Entendi o recado Dona Érica, entendi o recado.
Com o charuto e os pés na mesa o novo secretário pensava:
- Mulheres, mulheres.
Por Mariângela
Por que será que odeio planilhas?
Dá uma sensação de que a vida é por colunas
e o tempo corre em linhas.
No cruzamento de tudo, soluções exatas,
sem qualquer desvio.
Gosto mesmo é das palavras soltas e dos caminhos tortos
que as frases traçam num vai e vem impreciso.
Acho que é isto: sou pessoa word, nada a ver com excel.
Por Gabriela
Nesta coluna entram as despesas comuns, as da casa.
Justo dividir.
Aqui coisas que pago sozinha. Na outra, as que você assume.
Fácil administrar nossa planilha doméstica, concordo.
Exercício diário.
Assim como as coisas que não se planificam.
O acordar juntos e conversar sobre o dia, o que ainda vai acontecer.
Sacar o humor do outro, sacar o próprio. E daí levantar e aí ir pra vida.
Tomar café e fazer planos. Planejar o que vem pela frente. Ansiar pelo momento do reencontro, à noite.
E não fazer desta rotina, uma rotina.
Exercício diário.
Numa planilha imaginária em que não se divide, não se cobra. Entrega-se.
Ver o outro é um grande barato. Ver-se pelo olho do outro, também.
E este esforço, no final do dia, de uma semana, anos, uma vida juntos; é um lucro imenso.
Por Sylvia
Você tem tempo para tomar mais um café? Vai ter paciência de me ouvir novamente? Até já sei o que vai me dizer... não?! Você não sabe do que estou falando?! Pois então...Sempre aquele assunto. Só mudam os personagens...Por mais que me esforce, não consigo, não consigo ser diferente.
Ana ainda não foi embora. Sabe por quê? Não? Não sabe? Dessa vez quis fazer tudo diferente,como você me aconselhou.
Sou atencioso, telefono sempre depois de nossos encontros, procuro ser interessante, generoso na medida de minhas possibilidades... nem digo materiais, não, não é disso que estou falando, é claro, isso é fácil, dispender o que tenho é fácil. O difícil é dar o que não tenho... como fazer isso? Como me importar de fato com o que ela diz, com suas questões, com suas angústias? Como? Como? Você me falou mil vezes, mil vezes você disse que preciso sair de mim, que não sou o centro do mundo, que preciso perder o medo. Mil vezes você me disse. Então... fiz tudo que estava na planilha. Você estranha a palavra?! Pois é meu amigo, planilha...Assim teria mais controle da situação. Fiz colunas e linhas para organizar datas e saídas, presentes, idas ao restaurante, viagens, conversas sobre nós, número de relações sexuais por semana, cinemas, teatros que detesto, discussão de livros, palestras, convites a casais amigos, flores, caixas de chocolate, pequenas surpresas. Pareço estar agradando, Ana responde a todas essas gentilezas com afeto, muitas vezes com paixão. E minha desconfiança cresce. Sim, já sei o que vai falar, que sou maluco, que invento coisas para não ficar com uma mulher, que começo a criar situações intoleráveis até que ela não aguente e vá embora. Pois resolvi escutar seus conselhos, estou seguindo à risca a planilha, não vou estragar nada, por isso chamei você aqui hoje. Mais um café? Talvez um uísque agora, estou precisando de um. Aceita? Puro? Sei que gosta puro, sem gelo. Está difícil, muito difícil. Entrei em pane, sim pane...me sinto um motor de altíssima qualidade, um Mercedez, um avião, um foguete supersônico que está falhando. E se esse carro estiver em alta velocidade, se esse avião, esse foguete estiver voando, uma pane no motor...
por Cristina

Não fazia nada sem consultar a planilha. Perguntei: o que tanto tem aí que você não para de consultar? Disfarçou. Perguntei: são contas? Respondeu que preferia não comentar sobre o assunto.
Foi aí que fiquei curiosa: o que haveria ali? Porque não queria que eu visse?
Perguntei: Por que não quer que eu veja? Respondeu que não havia motivo nenhum, apenas eram coisas dele, só dele.
Enlouqueci. Saber o que havia ali tornou-se questão de vida ou morte. Não consegui mais falar de outro assunto: porque eu não podia ver? Que segredo era aquele? Seria segredo de trabalho ou da vida pessoal? É sobre alguma mulher? Você tem outra?
Você não confia em mim? Riu: deixa de ser boba, não é nada importante.
Piorou. Se não era importante porque não poderia me mostrar?
Entrei em desespero. Não dormi. Deve estar acontecendo algo muito sério, ele sempre me mostrou tudo. Acordei pedindo por favor, me deixa ver!
Irritou-se: para com isso, você já está exagerando, assim já está demais!
Chorei. Não acreditou quando me viu chorando. Entristeci, lágrimas escorrendo, incontroláveis.
Abraçou-me: mas por que você quer tanto ver? Expliquei que me parecia uma questão de confiança, que eu era desconfiada, que era insegura, que estava me sentindo péssima.
Então ele disse: Tá bom, pode ir lá e olhar o que quiser.
Corri. Vi. Não era realmente nada demais. Coisa sem graça, sem motivo simples.
Ele riu e me abraçou.
Minha aflição passou. Relaxei. Sorri, dei-lhe um beijo, agradeci.
Então pensei: ainda bem que ele nem sabe que eu tenho uma porque a minha, nunca vou mostrar!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... CRÉDITO

Por Gabriela
Me dê um crédito, me dê um beijo.
Sim, pode ter sido exagero mas você sabe que minha estima é quase nula, vez ou outra.
Entenda que outros nomes que não o meu na tua boca trouxeram um gosto ruim.
Lapso, pode ser mas o amor é essa mistura estranha mesmo.
Porque te quero muito, te disse. Esta vontade de te engolir.
Mas que na sua boca repouse só o meu nome, só a nossa história.
Vem, vem pra cama agora.
Por Mariângela
Pra você,
que tanto espero, e que sempre está comigo,
todo meu crédito, mais o que tenho de sobra.
A ternura nos escolheu a dedo,
para juntar nossos pedaços sem vida
e dar à luz ao que de belo construímos.
Desse parto, de dores e emoções infindas,
nascemos sem prazos nem limites.
Somos um ao outro aquilo que quisermos.
Mundo raro, tempo único, toque eterno.
A vida vai sempre fluir, eu sei,
mas num caminhar tão tranquilo
que tudo em nós há de, enfim, permanecer.
Por Cristina
Disse que me queria.
(Diante das circunstancias achei tão improvável!)
Confessou-se arrependido do que dissera.
(Dissera com tanta convicção, desconfiei.)
Mostrou-se solicito, carinhoso.
(Será que conseguiria manter-se assim?)
Beijou-me com volúpia, ousou carícias diferentes.
(Bem ele? Achei difícil de acreditar.)
Sussurrou paixão e amor eterno.
Calei-me porque na verdade,
não dei o mínimo crédito!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... CARACOL

Por Sylvia
Nasci assim, sem precisar de ninguém para me cuidar. Já nasci formado, com uma casca que me protege e que me protege mais ainda na medida em que cresço. Sou hermafrodita, possuo em meu corpo órgãos femininos e masculinos. Não conheço ninguém assim. Completo que sou, nada me falta.Tenho porém um desejo secreto que não revelo jamais. Gostaria de poder sair de minha casa e passear pelo sol. De poder arrastar minha barriga pela terra, deve ser estimulante sentir o cheiro fresco da terra virgem. Se fizer isso, morro, pois meu corpo precisa de umidade para sobreviver. Nesse ponto fico parecido com as minhocas, seres desprezíveis, de corpo mole, pele nua, sem esqueleto. Deixo um rastro de muco viscoso que facilita minha locomoção pois me dá maior aderência ao solo. Nem por isso consigo correr; minha casa pesa em meus ombros. Aliás, sua forma é inspiradora para artistas e arquitetos, tenho visto por aí, tenho ouvido falar.
Gostaria de ser serpente, mas sou apenas um caracol.
Não se foge ao destino.
Por Gabriela
Tão linda, cabelo anelado castanho claro caindo pelos ombros, caracóis perfeitos.
Olho cor de mel quase verde quase mar. Doce salgado. Intenso e profundo.
Bochecha rosada, bem fofa e branquinha. Lábios cheios de graça.
Ou então o cabelo liso e escuro, morena e misteriosa. Brejeira.
Daqueles olhos negros que mais parecem jabuticabas maduras e doces. Curiosos e urgentes.
Gargalhada provocadora, menina sapeca gostando do mundo e de crescer.
Desejosa de brincar com a vida, de vingar ao sol.
Como será, como será que será a nossa sonhada Anna?
Por Mariângela
Ela era tão linda!
Os cabelos pareciam pequenos caracóis pendurados.
E o sorriso? Doce, de anjo, mas de anjo da guarda.
Como encantava quando os olhos fitavam!
Eram tão negros e plácidos, tão vivos e ternos.
Um dia, crescida, viu-se no espelho,
surpresa com as formas arredondadas.
Os lábios carnudos e os seios duros.
A bunda roliça e a cintura bem marcada.
Sentiu-se tão bela, tão outra,
que não mais se encontrou naqueles caracóis.
Não era mais anjo, não tinha o mesmo rosto cálido.
E na noite perdeu-se na vida,
achando-se mulher no dia seguinte,
enquanto o sol entrava pelas frestas do quarto.
por cristina
Gostava de enrolar-se em si mesma.
Ia abraçando as pernas, encolhendo os músculos, enrolando o corpo, feito caracol.
A cada voltinha perguntava-se se estaria ficando pequena o bastante, redonda o bastante.
Quando criança vira uma minhoca enrolada assim feito caracol, morta, durinha, podia ser girada como se fosse uma moeda. Se ficasse bem pequena, bem redonda, bem durinha, alguém a confundiria com uma moeda? Ou com um caracol?
Não importava com o que mas o que mais queria era ser confundida. Estava cansada de ser retinha, certinha, tão previdente!
Queria enrolar-se a tal ponto que quem a olhasse não saberia mais se era uma minhoca, um caracol, uma moeda, uma coisa... Isto faria com que vivesse esta sensação de não ser ela mesma, de ser considerada uma não pessoa.
Viver esta sensação poderia mudar todo o rumo do seu caminhar no mundo. Talvez, depois desta experiência, poderia desenrolar-se lentamente traçando o caminho de volta para uma vida de pessoa.
Tinha certeza de que não voltaria igual. A cabeça, depois de enrolada, nunca volta igual.
Ai como ela gostava de enrolar-se em si mesma!!!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A PALAVRA DE HOJE É... SUPLÍCIO

Por Sylvia
Gostaria de rasgar com os dentes a jugular de quem invade meu espaço, de quem quer pegar minha fêmea ou meu macho. De comer até mais não poder, de me fartar até vomitar o que não cabe mais, assim como de beber até me afogar, sem me afogar. De ficar verde de bílis cada vez que alguém tiver algo que desejo e que não posso obter. De passar por cima dos humildes, que me fazem mal e de quem me ajudou, para não mostrar que um dia precisei. De não dar nada a ninguém, nada que esteja sobrando, nada que alguém esteja precisando. Nada. Gostaria de ficar ao sabor do vento e das tempestades, do sol e da chuva aproveitando tudo, não me negando nada, com excesso e desbordamento, completamente sem freios.
O caminho da virtude é um suplício.
Por Sócrates
O meu suplício é uma palavra de amor.
Uma derradeira mensagem perdida.
De homens e cruzes
De mulheres e lágrimas
O meu suplício é uma idéia de amor
Uma apologética história narrada
De homens e cruzadas
De mulheres e fogueiras
O meu suplício é um sacrifício de amor
Uma herança maldita
De homens e pecados
De mulheres e seus filhos
O meu suplício é um grito de ordem
Uma igreja sem crentes
De mulheres livres
De homens felizes
Por Mariângela
Não faça deste momento,
algo que eu lamente para todo sempre.
Não me peça o que não posso,
nem me diga o que devo fazer para te ser.
Não marque este tempo na lápide de minha memória:
seu suplício, minha morte.
Por Gabriela
Um suplício este estar tão perto e não poder.
Minhas mãos não entendem que se proíbe tocá-lo.
E não aceita a minha pele esta aridez de não merecer um toque teu.
Não faça assim, não.
Eu desencontrei o caminho de ser solitária, independente e autossuficiente.
Me encaixei nesta fôrma que teu corpo imprime no meu quando me abraça.
E já desconheço distância. Nem sei que cara os frios têm.
E, parece, não existo mais em qualquer lugar que não seja você.
Então não erga paredes assim. Você já é o que me vai por dentro.
Não me esvazie. Não faça assim, não.
Imploro.
Por Cristina
Saboreio teus detalhes
em cada pedaço do meu caminho.
Degusto tuas idéias
bebendo tuas palavras
e os sons que formam.
Lambo teus gestos
em todas as minúcias.
Sorvo teus beijos
e me aninho em teus braços.
Mas então te vais
deixando-me em sede
e fome.
Solidão dos dias e noites,
suplicio sem ti.