Diariamente, um desafio é lançado: uma palavra, apenas uma, que seja capaz de mexer com a criatividade desses oito escritores. Eles deixam os dedos correr no teclado, livres e descomprometidos. O resultado? Uma poesia, uma crônica, um haikai, um conto... Enfim, o que a inspiração deixar. O blog é isso, um convite à criatividade, provocada todos os dias, no finalzinho do expediente.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Por Sócrates*
O dia da cidade baixa
O sol revelava uma manhã de maré vazia na capital dos absurdos. As mães acordavam as crianças, batiam palmas para os erês e acendiam uma vela para o santo e outra para o orixá da vez. As crendices da velha Bahia ainda perduravam da Capelinha de São Caetano ao Alto do Itaigara. Os homens voltavam do boteco, após uma rodada de cachaça e um prato da tradicional feijoada das cinco. Sem mais cerimônias, as baianas fritavam o acarajé de Exu e os filhos de santo arrastavam o bloco afro pela avenida sete. Pouco a pouco uma multidão encobria a Praça da Sé para olhar o vasto oceano do alto do Elevador Lacerda. O carnaval anunciava a festa de yemanjá, que ganhou novos afazeres após a onda vermelha que arrasou por inteira a lendária cidade baixa. O Mercado Modelo, o Forte de São Marcelo, o Solar do Unhão, a Ladeira da Montanha, o Terminal da França, a Feira de São Joaquim, os faróis e os calçadões de Itapuã e da Barra, as Sete Portas, parte da Avenida Paralela, o entorno do estádio de Pituaçu, a Boca do Rio, o Largo da Mariquita, a Ribeira, e todos os edifícios do Plano Diretor construídos na calada da noite na Câmara de Vereadores se foram como a utópica cidade perdida de Atlântida. Tudo que era sólido, cotidiano, virou pedra mole, ou simplesmente água. A Baía de Todos os Santos se deixou enganar pela brisa suave da maresia e pelo conforto passageiro das barracas de alvenaria. As turísticas praias agora são páginas de livros e estórias de anciãs analfabetas.
Mas, pela força divina das vigílias das comunidades evangélicas, as quermesses e novenas das beatas católicas, as oferendas tardias das religiões de matriz africana a Exu, e os recursos desviados de obras públicas para o soerguimento de uma eclusa, a maior do mundo, uma vez por ano, justamente no período do Carnaval, os filhos de Oxalá, Deus, Jeová, vivem novamente os ares da inarrável cidade baixa. A prática de saciar a fome com pão e circo também não se perdeu. Mudam os cães, permanecem as coleiras.
Uma vez por ano uma centena de embarcações é suspensa por um elevador, que esvazia um imenso território ocupado pelo oceano através de duas comportas. A primeira localizada na antiga Base Naval de Aratu; a segunda, na derradeira Lagoa do Abaeté.
Os terminais de ônibus aglomeram uma massa de pescadores, um novo costume adotado pelos homens baianos, que ao contrário do passado trocaram os abadas de outrora por uma rede e uma vara de pescar. Tudo fornecido pela prefeitura. Trata-se de uma política de resgate dos valores de uma época esquecida, quando os saveiros ainda eram importantes e as puxadas de rede um bem cultural. Os camarotes, andantes ou não, se adaptaram a nova realidade e se tornaram flutuantes, balsas banhadas por muita badalação e celebridades além mar.
Nas folhas repetitivas dos jornais, intelectuais e pseudo-intelectuais elogiavam a capacidade inventiva da população, que re-significava hábitos e dava novos sentidos aos rituais. O certo é que o trânsito continuava caótico e a paisagem cinza dos operários do metrô desenhava no céu de urubus os infindáveis "últimos reparos" da obra faraônica iniciada no século passado. A ladeira da preguiça estava veloz, tomada por uma quantidade incontável de pernas e braços. Para muitos, andar de quatro vinha bem a calhar. E o poeta, Castro Alves, salve, salve, chorava o destino desta absurda Bahia dos camburões e das empreiteiras. Apontava para o mar como quem acaricia Oxalá e diz: "'Stamos em pleno mar. Embaixo, o mar em cima, o firmamento. E no mar e no céu, a imensidade!". Estamos em pleno mar, Oxalá bebendo, Exu sedento e o baiano de Gregório de Matos carnaval adentro, fudendo.


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Sócrates Gomes Pereira Bittencourt Santana é jornalista.
Obs: uma homenagem aos baianos e uma crítica ao Plano Diretor de Salvador.

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